Livro do mês: O Seminarista

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Ao ler as primeiras páginas de “O seminarista” (Editora Agir, 181 pgs), de Rubem Fonseca, nos deparamos com uma sucessão de crimes, narrados do ponto de vista profissional, isto é, o matador de aluguel relata casos que lhe permitam evidenciar a excelência do seu desempenho, ao mesmo tempo em que destaca aspectos rotineiros do trabalho, como o encontro com o intermediário que lhe passa o serviço e as estratégias utilizadas para evitar surpresas desagradáveis no instante da execução. Sem maiores informações sobre a identidade das vítimas e sobre o que motivou as mortes, guiados pelas observações do narrador, acompanhamos distanciados a mecânica repetitiva dos assassinatos. À semelhança do que acontece quando assistimos àqueles filmes de ação nos quais o fluxo das imagens segue o ritmo frenético dos embates, não nos afligimos: instalados no círculo vicioso de uma violência abstrata, que justifica a si mesma, contemplamos seus efeitos com uma certa indiferença.

Os assassinatos, em “O seminarista”, entretanto, ganham outra dimensão a partir do momento em que José, o matador de aluguel, passa a narrar a perseguição de que é alvo após a aposentadoria, justamente quando sonha com uma vida pacífica ao lado da mulher amada. A investigação dos antecedentes dos crimes cometidos torna-se, agora, importante, visando a identificação dos indivíduos que o ameaçam. Envolvidos com a narrativa de José, que passou de caçador a caça, tomamos o seu partido, sofremos com ele. Nesse ponto, começamos a suspeitar de que caímos numa armadilha e, se já tivermos lido obras anteriores de Rubem Fonseca, percebemos que, mais uma vez, nos deixamos levar por aquele jogo maldoso com o ponto de vista da narrativa, que é a marca registrada de sua ficção. Jogo maldoso porque põe em xeque todas as certezas, inclusive as crenças que fundamentam as interpretações ingenuamente humanitárias.

Desde os primeiros livros de contos, publicados na década de 1960, é através do trabalho sutil com o ponto de vista que Rubem Fonseca nos surpreende, embora sua obra gire obsessivamente em torno do mesmo tema, desdobrado em múltiplas faces: o da verdade como ilusão retórica. Não é por acaso que um dos personagens recorrentes no universo ficcional do autor seja Mandrake, ilusionista da palavra, assim como o outro Mandrake, o das histórias em quadrinhos, é um mestre da prestidigitação, um ilusionista do olhar. A desconfiança de que toda verdade seria uma construção discursiva dá lugar também àqueles personagens solitários, ao mesmo tempo nostálgicos e cínicos, que não conseguem levar a fundo os valores que sustentaram a cultura ocidental moderna, mas tampouco deles se libertaram completamente. Se Deus morreu, José, o seminarista narrador do último romance, não vê maiores problemas em abraçar a carreira de assassino de aluguel, mantendo, no entanto, o hábito de citar brocardos latinos, que, de alguma forma, lhe servem de referência. Da formação religiosa recebida, restam pequenos fragmentos de textos, transformados em máximas e veiculados numa língua morta, que, ironicamente, os legitima. Resta também um esporádico sentimento de culpa.

A narrativa em primeira pessoa será, então, a forma privilegiada para expressar a visão de mundo que preside a ficção de Rubem Fonseca, marcada pelo ceticismo que descentra os valores, que os historiciza. Consequentemente, a recusa do dualismo moral que tudo explica pela oposição de base teológica entre os princípios do Bem e do Mal estará na base do tratamento dado à violência. O perspectivismo de todos os juízos evita que a essencializemos, pois sua conceituação dependeria do valor atribuído aos comportamentos por uma determinada cultura em determinado momento. Assim, a violência, na literatura do escritor, não está atrelada ao relato de crimes. Estes são uma pista falsa, meros pretextos para que se questione a violência primeira, a da linguagem: lugar onde se constroem as ficções lógicas que explicam e justificam qualquer ação. Por isso, em O caso Morel, encontramos a seguinte epígrafe: “nada temos a temer, exceto as palavras”. Frase que, com alterações, ressurgirá em outras obras. No conto “Romance Negro”, o personagem Winner afirma: “As palavras são nossas inimigas”.

A variação, a cada narrativa ou dentro de uma mesma narrativa, de pontos de vista sobre uma mesma questão, sem o apoio de uma voz moralizante, abre caminho para que as verdades estabelecidas sejam colocadas sob suspeita, pois nos força a ver a realidade de diferentes ângulos. No caso do livro “Feliz Ano Novo”, por exemplo, a primeira pessoa que oscila do personagem assaltante, num conto, para o personagem empresário ou escritor, em outros, provoca inquietação, porque quebra as expectativas em relação aos papéis sociais, rompe com a estabilidade dos discursos direto e indireto, sinalizando a disseminação do crime por todas as classes sociais. Nesse sentido, a cidade será o cenário propício para as tramas de Rubem Fonseca, não apenas porque é o lugar onde muitos crimes acontecem, estimulando a criação de histórias de temática policial, mas, sobretudo, porque é o espaço onde as narrativas proliferam, tornando inócua qualquer tentativa de atingir uma verdade última. O Rio de Janeiro é representado com suas divisões de ordem sócioeconômica — a Zona Sul, onde se concentram os ricos, a Zona Norte e periferias, habitadas por uma população mais pobre — mas esta divisão tem as fronteiras relativizadas pela geografia do crime, que reagrupa os indivíduos segundo leis próprias, podendo aproximar os poderosos e os marginalizados pela sociedade.

A obsessão temática de Rubem Fonseca, que nos faz voltar sempre ao local do crime, duvidando de nossas cômodas certezas, traz à lembrança um outro escritor — Machado de Assis — que, segundo Antonio Candido, passou a vida inteira, ilustrando uma única pergunta. Por sinal, a mesma que atravessa toda a ficção do autor de “O seminarista”: “Se a fantasia funciona como realidade; se não conseguimos agir senão mutilando o nosso eu; se o que há de mais profundo em nós é no fim de contas a opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece realmente valioso, qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado?” 

Por VERA LÚCIA FOLLAIN DE FIGUEIREDO, professora da PUC-Rio, autora de “Os crimes do texto” 


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SOBRE O AUTOR

Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca é formado em Direito, tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 31 de dezembro de 1952 iniciou sua carreira na polícia, como comissário, no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Muitos dos fatos vividos naquela época e dos seus companheiros de trabalho estão imortalizados em seus livros. Aluno brilhante da Escola de Polícia, não demonstrava, então, pendores literários. Ficou pouco tempo nas ruas. Foi, na maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado em 06 de fevereiro de 1958, um policial de gabinete. Cuidava do serviço de relações públicas da polícia. Em julho de 1954 recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas sobre esse assunto na Fundação Getúlio Vargas, no Rio. Na Escola de Polícia destacou-se em Psicologia. Contemporâneos de Rubem Fonseca dizem que, naquela época, os policiais eram mais juízes de paz, apartadores de briga, do que autoridades. Zé Rubem via, debaixo das definições legais, as tragédias humanas e conseguia resolvê-las. Nesse aspecto, afirmam, ele era admirável. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre setembro de 1953 e março de 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas na New York University. Após sair da polícia, Rubem Fonseca trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É viúvo e tem três filhos.

Reconhecidamente uma pessoa que, como Dalton Trevisan, adora o anonimato (o único registro fotográfico que conseguimos foi feito há muitos anos), é descrito por amigos como pessoa simples, afável e de ótimo humor.

Foi, ao longo de sua carreira, agraciado com inúmeros prêmios literários, abaixo descritos.

Sendo profundamente interessado na arte cinematográfica, escreve também roteiros para filmes, muitos deles premiados:

-  Coruja de ouro, roteiro Relatório de um homem casado, filme dirigido por Flávio Tambelini.

-  Kikito de ouro do Festival de Gramado, roteiro de Stelinha, dirigido por Miguel Faria.

-  Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte,  roteiro de  A grande arte, filme dirigido por Walter Salles Jr.








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